Hugo Fonseca- Estudante de Direito da UnB.
Com certeza, você se lembra daqueles “19 de abril” na escola. Sua professora te pintava, você cantava “Vamos brincar de índio”, dançava tentando ser realmente um indiozinho. Algumas reflexões eram feitas: Amazônia, natureza, colonização. Alguém timidamente se atrevia a lembrar às crianças da importância de lutarmos pela cultura indígena, mas a graça da coisa era que a aula acabava depois do recreio, já que a apresentação de alguma dança tomava o espaço dos últimos horários. Eu também passei por isso. Vi muita tinta guache em meu rosto nos “19 de abril” e, assim como me pintei, me lavei em todas as vezes: e é disso que emanam minhas palavras.
Algumas pessoas devem estar se perguntando: qual o problema dessa pessoa? Com ares ora de nostalgia, ora de drama, mas sempre totalmente fora de contexto, afinal de contas o mês de Abril já passou faz tempo e está longe de chegar novamente. Talvez seja muita pretensão, mas digo que não estou tão desvairado assim – por mais que pareça. O dia do índio me preocupa! Assim como uma criança que chega em casa e lava seu rosto, nós lavamos o nosso em todos os outros dias do ano. Com os rostos lavados, lavamos também as mãos e fechamos os olhos. Há algo prestes a reduzir o resquício indígena no Brasil e não são 19 de abril: mas e daí? É hora de se pintar, novamente...
Pode ser que alguns tenham se informado pelo vídeo produzido pelos globais, ou por cada vídeo novo que insiste em nos surpreender nos e-mails ou atualizações de redes sociais, mas a história vem de mais tempo. Refiro-me (óbvio) à Construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. O projeto compreende o desvio de um trecho do Rio Xingu, denominado “Volta Grande do Xingu” (situado nas mediações do município de Altamira), com vistas à construção da terceira maior UHE do mundo. Produzindo 11.ooo MW por mês a partir de 2020, muita energia, muitas pessoas e empregos estarão envolvidos e isso é bem fácil de imaginar. Resta saber se o envolvimento é positivo ou não, por isso vamos aos bastidores de uma história deveras distorcida, os quais darão sentido ao início do texto.
A preocupação que me norteia é o fato de que há um preço, muito caro, para toda a possível guinada na matriz energética brasileira. Ambientalistas apontam que vivem como ribeirinhos do Xingu uma média de seis tribos indígenas que seriam expulsas de seu território. Uma das barragens desviaria o curso do rio, deixando secos praticamente 100 km. Esta quilometragem compreende o lar de duas grandes comunidades indígenas, a qual tem no rio 80% de sua fonte protéica (peixes). Sem o rio, não há nenhuma forma de sobrevivência nem às diversas tribos, nem aos animais que têm o Xingu como hábitat. Uma espécie de peixe só encontrada nesta região, cuja captura é proibida pelo IBAMA, denominada de acari-zebra corre sérios riscos de extinção e da mesma forma a desova de tartarugas e tracajás é ameaçada. Neste contexto, vê-se que o ritmo frenético de algumas coisas inaugura um paradigma em que não importa o preço que alguém pague, pois tudo é insignificante frente à nossa capacidade de “evoluir”.
O preço da obra pode chegar a 30 bilhões de reais. Algo muito caro quando estudos da Universidade de São Paulo mostram que o mesmo percentual em produção de energia pode ser alcançado com a modernização das usinas já existentes. Há uma propaganda sendo veiculada, a qual diz que do montante envolvido no plano orçamentário, 3,7 bilhões de reais seriam destinados para ações socioambientais. Alguns vão saudar a iniciativa, mas particularmente acho no mínimo ridículo estipular um preço para as perdas. Talvez isso seja fruto do mal da nossa sociedade, que trabalha apenas com números, com valores, com isso surge a ideia totalmente repugnante de pagar a morte de peixes, por exemplo, com alguns bilhões de reais.
É por isso que se faz necessário entendermos a quem interessa afirmar que Belo Monte é uma evolução necessária e o que está por trás disso. No projeto não há menções, mas é preciso esclarecer que a maior energização estará nos lucros das grandes empresas envolvidas na construção da usina – Andrade Gutierrez, Camargo Corrêa, Odebrecht, Vale, Votorantim, GDF Suez e Alcoa – as quais pretendem aumentar a tarifa a ser cobrada pela energia produzida, o que fará com que a produção já nasça excludente e comprometida com quem tem dinheiro para comprá-la. Além disso, sabe-se que O BNDES e Fundos de Pensão estatais pretendem injetar créditos e investimentos e dessa forma temos a horripilante notícia de que é a própria população a financiadora de um crime contra seu patrimônio cultural e ambiental.
Por falar em crime, há outras atrocidades sendo cometidas contra os trabalhadores da construção da usina. 80 funcionários foram demitidos após uma manifestação que contestava a cumprimento dos acordos de uma última paralisação. Entre outras garantias previstas no acordo constava que haveria três meses de estabilidade para os trabalhadores, que o salário fosse adiantado para o dia 20 e que a Baixada – tempo de volta do trabalhador à sua casa – fosse diminuído de 6 para 3 meses, como acontece em toda obra. O fato é que nada foi cumprido e como se não bastasse os patrões de Belo Monte trataram o direito trabalhista como caso de polícia. A PM foi truculenta, apontava armas para os caros colegas manifestantes que foram “humilhados que nem bandido, que nem vagabundo” como disse um dos funcionários demitido e reprimido por lutar por uma condição de trabalho mais digna.
Infelizmente, há ainda muito a se dizer. Pareceres do IBAMA com aprovação só na diretoria; audiências públicas que foram executadas sem a presença de um indígena sequer; redução na produção de energia em alguns períodos devido às irregularidades na vazão do rio; moradores de Altamira que são despejados pela própria especulação imobiliária uma vez que chegam pessoas de todo canto com ofertas insuperáveis; construção de novos barracos em um novo terreno ocupado por 178 famílias de bairros pobres com medo de que suas casas sejam alagadas; além da existência de uma ação civil pública que denuncia que o Governo Federal tem infringido a Convenção 169 da OIT, a qual prevê Oitivas (consulta à opinião do povo indígena). Mas para não delongar mais ainda, reflito sobre os atos pelo Brasil no dia 17/12. Aquele sábado, que poderia ser mais um, significou a união dos defensores do patrimônio cultural e ambiental em todo o país. Indo às ruas, as pessoas disseram o seu Não!
Já disse o compositor que “todo dia era dia de índio”, resta dançar conforme a música – um clichê não faz tanto mal assim. Só que para dançar é preciso se mexer, se desinerciar – neologismo também não faz mal, faz? É hora de nos armarmos de nossos gritos e ampliar a discussão, fazer do dia 17 uma rotina e não mais um 19 de abril solitário. É hora de pintarmo-nos com a pureza daquela criança que se pintou na escola, mas sempre com a força de um índio, guerreiro! A luta contra Belo Monte começa nas ruas, com todos nós lá no meio.